O BÚFALO

quinta-feira, 17/11/16 16:00

Por Anna Maria de Almeida Rezende

 

O Búfalo –  é o 13º e último texto a compor o livro “Laços de Família” (1960),  de Clarice Lispector,  considerado um dos grandes livros de contos de nossa Literatura.

Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, em 12 de dezembro de 1920, de família humilde. Essa região fez parte da guerra civil e sua mãe foi violentada por um grupo de soldados russos contraindo, como consequência, a sífilis o que lhe trouxe grande sofrimento. Na época acreditava-se que o nascimento de um filho poderia curar a doença. Assim sua mãe (Mania) decidiu ter um filho para que essa criança aliviasse suas dores. Mas tal  fato não teve o efeito esperado e a jovem senhora morreu quando Clarice (caçula) tinha apenas 9 anos. Clarice carregou por toda a vida esse sentimento de culpa, por não ter sido capaz de salvar a vida de sua mãe.

Seu nome judeu é Chaya, que significa "Vida". 

Clarice Lispector era grande admiradora dos animais, pois ela própria se via como um animal que dá à luz.   Esse fato é frequente em toda sua obra e muito evidente em vários de seus textos. E por que esse fascínio?  Porque  Clarice esteve sempre à procura de algo puro, real, algo que não pudesse se contaminar com as palavras. E os animais não têm palavras, não questionam, eles simplesmente vivem.

E esta era a imagem ideal para ela.  Ela queria viver, sem quaisquer perguntas ou questionamentos. 

Seus contos são fatos do cotidiano, como de resto parecem ser todos os livros de sua lavra, exprimindo suas angústias e solidão.  Em suas obras existe sempre um apelo em falar de mulheres submissas, sofridas, aprisionadas em suas funções domésticas e familiares, retratando as poucas oportunidades de se colocarem em função de igualdade com os homens, apresentando quase sempre como  personagem central a mulher que vive à sombra do pai ou do marido, em uma sociedade machista em que a mulher pouco esteve inserida. 

O conto apresenta uma personagem feminina que necessita desenvolver um sentimento de “ódio” supostamente pelo marido que não a ama, e que sai ao encontro deste sentimento.  Ela não recebe nome, é identificada apenas como “mulher” ou  “a mulher do casaco marrom”.  No correr da história, a protagonista quer aprender a odiar, a exemplo dos animais que ela vai buscar  em um Jardim Zoológico, local onde a história se desenvolve.  Neste local, sua esperança é encontrar nos animais enjaulados os sentimentos mais primitivos, tão destrutivos e selvagens quanto ela precisava.

Traz, em sua mente, uma frase que se fixa pior que uma doença: 

“Onde aprender a odiar para não morrer de amor?”

“Deus, me ensine somente a odiar”. 

Suas primeiras tentativas falham e a surpreendem porque ela acaba se sensibilizando com a docilidade dos animais. 

– Diante da jaula do leão,  a mulher se sente impotente  pois encontra um  clima de amor e o leão parece feliz, depois de ter feito amor com uma leoa.

– Com a girafa não é diferente, uma vez que esta está radiante de vida; mais parece uma “virgem de tranças recém cortadas”,  “que era mais virgem que um ente”.

– Ela também percebe que o hipopótamo, com toda sua gordura e seus movimentos lentos, é feliz, ainda que não pense em sua felicidade. “O rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando outra carne roliça e muda”.

– A possibilidade  de sentir um  resquício de amor ao avistar os macacos a faz se afastar deles. “Os macacos em levitação pela jaula, eram felizes e a macaca dava de mamar”.

– Foi ter com o elefante e, diante dele, percebe que o tamanho e o peso do animal em nada superam sua docilidade.

– A mulher então experimentou o camelo. A fragilidade do camelo não lhe desperta ódio, embora seu cheiro tenha lhe estancado as lágrimas e provocado um sentimento maligno:  um ódio seco, não lágrimas!

– Cansada, exausta, com a respiração curta e leve, a mulher apoia a testa na grade de uma jaula e olha para um quati, mas sua ingenuidade também não lhe permite odiá-lo. “A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava”.  A jaula era sempre do lado onde ela estava. O conto sugere que a personagem se animaliza diante dos animais, como se pretendesse  dizer de sua melancolia, de sua tristeza, de sua dificuldade como ser humano de domesticar seus próprios impulsos instintivos. 

“Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ter o seu próprio ódio? O ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava? Onde aprender a odiar para não morrer de amor?”. 

“Recomeçou então a andar, agora apequenada, dura, os punhos de novo fortificados nos bolsos, a assassina incógnita, e tudo estava preso no seu peito. No peito que só sabia resignar-se, que só sabia suportar, só sabia pedir perdão, só sabia perdoar, que só aprendera a ter a doçura da infelicidade, e só aprendera a amar, a amar, a amar”. 

– O encontro decisivo ocorre quando, já sem estímulo, a mulher avista um búfalo pastando à beira de um riacho. Os dois se encaram durante um longo tempo.     Ele era negro e seus cornos muito alvos.

Este animal, por tudo o que tem de selvagem, ameaçador e assustador,  passa a se configurar como um  estranho que se torna familiar e será usado pela personagem para dirimir seus conflitos particulares. A protagonista parece desejá-lo pois a sua fortaleza trazia para ela uma simbologia masculina. Mas percebe, momentaneamente, que pode cair na mesma armadilha de amar e ser ignorada, porque o animal lhe dá as costas.  Mas o animal sente a presença da mulher. Volta, aproxima-se dela e a encara. 

“A mulher aprumou um pouco a cabeça, recuou-a ligeiramente em desconfiança. Mantendo o corpo imóvel, a cabeça recuada, ela esperou. E mais uma vez o búfalo pareceu notá-la”. 

Ao longo da história, até o momento em que acontece o encontro com esse animal, a mulher deseja romper com os laços de afeto que ainda nutria pelo homem que a desprezava e, com isso, livrar-se do aprisionamento que isso  lhe trazia. Mas a manifestação do encontro com o animal é nauseante, incômoda e a deixa perplexa. Daí em diante o instinto de morte torna-se mais presente na mulher, tanto no sentido de matar o búfalo quanto no de suicidar-se. 

É um trocar de olhos fortíssimo, em que ela sente a explosão de um misto de amor e ódio, da forma mais primitiva possível e, talvez por isso, mais forte, mais intensa, que ela jamais experimentara.  

“Então o búfalo voltou-se, imobilizou-se e,  à distância,  encarou-a.

– Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. –

– Eu te odeio, disse implorando “amor” ao búfalo”.

Enfim,  provocado, o grande búfalo aproxima-se  sem pressa!! Esse encontro sugere um êxtase sexual, porque a mulher não resiste e desmaia!! 

“E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos. E uma palidez tão funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente. De pé, em sono profundo”. 

“Inocente, curiosa, entrando cada vez mais fundo dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingênua, num suspiro de sono, sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo assassinato. Presa como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades. Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo”. 

Embora o conto encerre com a sugestão confusa de morte da personagem, a sensação que fica é de que essa morte não é uma morte física.  A cena sugere a ideia de que a mulher que só sabia amar, não existe mais!! O encontro  com o búfalo faz nascer nela o sentimento de ódio que tanto procurava e aquele momento supremo da identificação com o objeto de sua paixão, significa a sua paralisação, o seu congelamento, uma  aceitação tácita  de ter vislumbrado,  extasiada,   sua liberdade (o céu inteiro!!)  e seu ódio,  há muito alimentado,  na figura de um  búfalo!! 

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